Eles cresceram juntos. A distância temporal que os separavam era de apenas alguns meses. Viveram toda a infância e adolescência no mesmo ambiente bucólico de uma fazenda interiorana. Eram amicíssimos, gostavam das mesmas coisas e ainda moravam no mesmo espaço geográfico; a grande disparidade entre ambos era o berço: um era filho do dono, o outro filho de um empregado da fazenda. Um nascera em “berço de ouro”, o outro usara o berço emprestado de um irmão mais velho.
Aparências físicas eram poucas ou quase nenhuma. Apesar de terem apreço por coisas semelhantes, a vontade de um sempre se sobrepunha à vontade do outro. Logicamente, que esta vontade é consoante com as leis contraditórias (e quase consuetudinárias) que regem o capitalismo, fazendo com que o patrãozinho tenha suas pretensões e gostos saciados com maior densidade que o filho do empregado, que muitas vezes era privado de necessidades básicas ou submetido a situações nada agradáveis.
Bernardo, o filho do empregado da fazenda era um sujeito pobre ao extremo. Submisso, oprimido e humilhado. Nunca pôde chamar o patrãozinho pelo nome na frente de seu pai, era sempre patrãozinho. Muitas vezes assumia culpas pelas traquinagens do patrãozinho, assumindo, assim, por mais paradoxal que seja, um papel paternalista em relação ao filho do patrão de seu pai. Este último, prepotente que era, desde cedo percebera as vantagens que o berço lhe dera.
Certa feita, quando tinham ambos sete anos, o tal patrãozinho quebrara um vaso de cerâmica que era muito caro a sua mãe, Lucinda. Dizia ela ter recebido aquilo como herança de família (adorava repetir que tinha sangue nobre, pois que sua família era romena e descendente direta da alta nobreza daquele lugar), hábito que se repetira por sete gerações seguidas e que o tal vaso tinha origem persa, adquirida por um antepassado seu a um caixeiro-viajante, em tempos remotos e imemoráveis, em terras húngaras.
Como ia contando, antes que perca o fio da meada e acabe dizendo-vos uma outra história, o tal vaso foi quebrado pelo patrãozinho, que sabia de todo o amor que sua mãe dedicava àquela peça e do mar buliçoso em que se encontrava: náufrago em plena terra firme. Com mal disfarçada ansiedade, correra à casa de seu alugado e lhe fizera ir ao local onde jazia o vaso persa. Esse último, em primeiros olhares, compreendera tudo e assentira com um silêncio irrevogável. Acabou por assumir a conta da traquinagem alheia, pagando com o próprio lombo, a culpa da falta de coordenação motora nas mãos do patrãozinho.
As feridas que seu pai lhe fez ao espinhaço doeram-lhe alguns dias, mas nada que banhos de rio e brincadeiras com o filho do patrão não o fizessem esquecê-las. Assim cresceram, adentraram à puberdade, engrossaram o pescoço e a voz. Como era de se esperar, patrãozinho ainda beneficiava-se do empregado, amigo seu. Contudo, malgrado meu, este subira de cargo: agora era alcoviteiro dos amores voláteis do patrão.
Apesar de assumir este cargo – deveras honroso para ele – também conseguia, não raro, meninas para desposar em instantes fúlgidos e fugidios. Como dizia sua mãe, tinha no sangue o mesmo que o pai: “um gosto por muié que eu nunca vi!”. Com efeito, se não tinha em sobras, tinha sempre alguém com quem pudesse deitar depois do almoço, em substituição à sesta. Além dos momentos de cópula com vadias e meretrizes da região onde morava, o filho do empregado tinha uma namoradinha, Sueli.
Como esta seria a mulher que receberia perante Deus – tinha muita vontade de casar com Igreja enfeitada, terno, gravata, padre e churrasco para convidados! – não bulia com ela, contentando-se em fornicar com outras mulheres, resguardando para o leito de núpcias a virgindade de sua bela namorada.
Contudo, o Destino tem razões que a própria razão desconhece. O destino é um homem que nunca cresceu de todo: parece andar sozinho pelo mundo, seguindo uma lógica própria, pregando peças em todos nós, sem importar-se muito com as consequências do que ele mesmo produz; ao que parece, sua única preocupação é não deixar nossa existência cair em uma rotina costumeira, dando força motriz à própria vida, para que este dialogue com algo que não esteja preparada ou não esperava ter de enfrentar.
Eis que, no auge do amor do empregadinho por sua, dentre em breve, esposa, surge aquilo que só mesmo o Destino – esta entidade ao mesmo tempo demoníaca e angelical – pode preparar. Ia até o último de suas forças, sugava-se os últimos restos de seus pulmões para não transcender a barreira criada por ele próprio – pois era nítido que Sueli, o corpo entupido de hormônios próprios à idade, estava muito a fim que Bernardo quebrasse o cabresto que impusera a si mesmo. Bernardo estava em vias de invalidar sua própria promessa, mas lembrava-se que sua finada avó: “Meu filho, casar com mulher já mexida não dá sorte para os filhos”.
Boquinha da noite de um dia muito calorento, patrãozinho chega à casa de seu empregadinho com uma expressão facial que não passaria despercebida nem ao maior dos desavisados: metera-se onde não devia e não sabia sair sozinho do buraco que cavara para si.
O fato é que há algum tempo patrãozinho vinha mexendo no tesouro que Bernardo guardara para desfrutar somente após a concessão divina. Grande foi o torpor que tomou conta de seu corpo quando o patrãozinho lhe informara, sentindo-se narcotizado e esperando, em vão, que este lhe abrisse um sorriso e confessasse que estava mentindo. Ledo engano: o fato estava consumado!
E como eventos negativos – das duas, uma (ou mesmo as duas!) – tem irmãos gêmeos ou conseguem reproduzirem-se incrivelmente, patrãozinho agravou a eminente situação aversiva de Bernardo:
- Ela tá buchuda! E tu sabe que eu não posso casar com ela nem nós podemos abandoná-la à própria sorte...
Bernardo entendera, ato contínuo.
Seus sonhos passam a ser dessonhados: não havia muito tempo! Havia de casar mês que entra, mais tardar. Pior seria se todos soubessem.
Nada de pompas, nem convivas, nem gravata... talvez nem anel tivesse. O que teria, isso sim, e pelo resto da vida, era de cuidar de um filho que não teria nada de seu, a não ser a má sorte de nascer em uma família pobre.
Em instantes, previra anos: casar-se-ia com uma mulher que, a despeito de seu bem-querer, traíra-lhe com seu melhor amigo (revogadas as disposições em contrário); criaria um filho d’outro que, fatalmente, seria escolhido para apadrinhar o rebento; perderia sua festa de casório tão sonhada; ocultaria de sua mãe que seu primeiro neto não era seu parente de sangue e, golpe final, esconderia isso de todos até o fim de seus dias. Se necessário fosse, faria uma algibeira em sua mortalha para levar este segredo para além-túmulo.
Enfim, a festa de casório, tímida como era de se esperar, dada a pouca posse dos noivos e, apesar da ajuda dos “imensuráveis esforços” (palavras do padre, que celebrara a união perante Deus) do patrãozinho em dar-lhe fartura, ocorrera.
“Como é que a Sueli teve esta coragem, se dizia perante a estátua de Santo Antônio lá de casa que me amaria até o fim? E o patrãozinho? Agora entendo porque ele tinha tanto interesse em meu namoro e não cessava de repetir que namoro era besteira, que eu devia era ficar solteiro, que mulher nenhuma prestava.. e eu sempre dizia que ela era diferente... o pior de tudo é ter que aguentar calado. Quando a gente apanha pode ao menos gritar. Mas se eu for reclamar como vou ter coragem de olhar pros outros? Como vou ter gana de trabalhar na lida se por onde passar vou ouvir – mesmo que não digam – me chamarem de corno? No fim, quem tem razão mesmo é papai: a corda só arrebenta na mão do pobre.”
O vestido da noiva, frouxo como era de se esperar de uma noiva que quebrara as leis celibatárias antes do himeneu, disfarçava bem o ventre crescido.
19.dez.2011
Até uma gota d'água consegue se diferenciar das outras em meio a uma imensidão sem fim de gotas iguais...Mas por que nós, seres humanos, instituídos por uma razão e uma pretensa capacidade de pensar, insistimos tanto em sermos iguais uns aos outros?
Vivo a diferença a cada suspiro meu, a cada gota de suor, a cada raio de sol, a cada novo luar, a cada sinapse neurótica de meu cérebro, a cada instante, a cada momento, a cada sempre...
Viva a diferença, não ao estereótipo!
"Ser poeta não é ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho."
Fernando Pessoa
Vivo a diferença a cada suspiro meu, a cada gota de suor, a cada raio de sol, a cada novo luar, a cada sinapse neurótica de meu cérebro, a cada instante, a cada momento, a cada sempre...
Viva a diferença, não ao estereótipo!
"Ser poeta não é ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho."
Fernando Pessoa
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012
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Muito bem contada sua história, parabéns Neto!!
ResponderExcluirObrigado, Orestes. Elogios de parte tão nobre são mais valiosos.
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