Até uma gota d'água consegue se diferenciar das outras em meio a uma imensidão sem fim de gotas iguais...Mas por que nós, seres humanos, instituídos por uma razão e uma pretensa capacidade de pensar, insistimos tanto em sermos iguais uns aos outros?

Vivo a diferença a cada suspiro meu, a cada gota de suor, a cada raio de sol, a cada novo luar, a cada sinapse neurótica de meu cérebro, a cada instante, a cada momento, a cada sempre...

Viva a diferença, não ao estereótipo!



"Ser poeta não é ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho."

Fernando Pessoa

domingo, 2 de dezembro de 2012

Doce Novembro


Chegou a ela, meio vacilante, mas decidido:
¿Oi, tudo bem?
E ela, querendo mostrar-se simpática:
Oi, ¿o que achou da nova professora?
Ele, querendo logo mudar o assunto:
Sei lá, mas parece bem segura sobre o que quer dizer...
É, achei algo parecido...
Tomando fôlego e coragem uma vez mais, jogou:
Tenho uma proposta pra você.
Ela, pega em surpresa, titubeou:
¿Proposta?
E riu desajeitada.
Ele, percebendo sua hesitação, disse de prontidão:
Hoje começou novembro. Minha proposta é vivermos, eu e você, um doce novembro, como no filme.
Sem entender o que seria aquela proposta, Hilana virou o olhar e tentou sorrir, mas nem isso conseguiu, dado seu embaraço.
As colunas do restaurante universitário pareciam ser testemunhas óticas desse absurdo proposto nos últimos segundos. Hilana olhava para as ditas colunas e ficava lembrando-se de cenas do filme. A que o garotinho Abner pede a Nelson para que seja seu pai na escola marcou-a profundamente.
Como que para não ser ouvida pelas colunas de sustentação do edifício, fez um “han?” inaudível.
Ele, senhor de si e imaginando que ela deveria estar pensando mil coisas por segundo, fez seu melhor sorriso e emendou:
Uma proposta assim não reclama que pensemos sobre ela, mas que a aceitemos ou não. Se pensarmos, claro que vamos lhe dar uma negativa. Eu bem sei que é uma sugestão completamente irracional. Se você pensar um pouco, também chegará a esta conclusão facilmente. Portanto, lhe peço: simplesmente me diga sim ou não, sem sofismar muito. E riu mais uma vez.
Ela também, mais sem graça do que por achar a situação engraçada.
Achou por bem falar que a comida estava gostosa, tão logo sentaram, lado a lado e frente a frente com um sem número de estudantes desconhecidos para ambos.
Higor não respondeu. Hilana, achando-se acuada, percebendo que devia uma resposta, bradou em tom lépido:
Talvez você não saiba, mas eu tenho um namorado. E essa proposta é meio maluca...
Ela, filha de pai italiano e mãe holandesa – o que lhe garantia um belo par de olhos claros e um cabelo dourado, de bela face, dessas de chamar a atenção – tinha viagem marcada para a Europa no início do próximo ano. Ficaria uma boa temporada por lá. Enquanto isso, trancaria a faculdade e viveria às custas de sua mãe.
Ele, sabedor do enlace – afinal para isso estão aí em toda parte as redes sociais – bem como da viagem marcada para breve, não se fez de rogado:
É, eu sei. Mas isso não é problema. Eu também tenho namorada.
Ela, achando ver aqui uma brecha, encadeou:
¿Então, como você me propõe algo parecido se nem é livre para cumprir sua parte na empreitada? E sorriu, dona de si.
Acontece que Higor era implacável:
Mas não é disso que se trata. ¿Você não assistiu ao filme?
Ela fez que sim com o crânio.
¿Então não lembra que um doce novembro dura apenas um mês? ¿E que um parceiro não deveria se apaixonar pelo outro, sabedor da efemeridade do romance?
Mas eles acabaram apaixonando-se, ¿não foi? Nem sempre o plano sai como o projeto...
Mas nós poderemos fazer dar certo. Depende mais de nossa vontade do que de um projeto anterior. ¿Você não acredita?
Não estou bem certa quanto ao fato de acreditar ou não. Talvez seja mais falta de vontade que propriamente falta de crença.
Aqui, um leve engolir em seco por parte dele.
¿Acaso recorda que, inicialmente, ele achou uma ideia absurda da parte dela, mas que, consentindo, permitiu viver-se um dos mais belos romances da história do cinema? A única diferença aqui é que, em vez de ser por parte da mulher a proposta, é esta quem fica atabalhoada.
Ambos terminaram seus pratos. O barulho era o mesmo de sempre onde há pessoas famintas e saciando-se: um misto de satisfação e impaciência, bem como de bater de talheres e de esôfagos e glotes deglutindo. Ambos estavam fora de casa desde manhã cedo e, provavelmente, não voltariam antes de entardecer para casa, atarefados que são os estudantes profissionais. Um leve cheiro de suor impregna o ambiente.
Hilana e Higor também suam, umedecendo suas roupas mais íntimas. Ela, talvez pela apreensão de estar exposta a uma circunstância da qual não consegue imaginar como fugir pelos próximos 40 ou 50 minutos, sua mais que o devido. Não foi à toa que ele escolheu este horário e justo na quarta-feira, pois sabia que às quartas ela almoçava sozinha e sua aula só retomava depois das 15:00 horas. Tempo haveria.
Higor, remexendo suas pilhas de tralhas há alguns meses atrás encontrara a gravação de um filme que ganhara de uma ex-namorada em tempos que não conseguia relembrar-se ao certo. O filme era justamente Doce Novembro. Não foi má ideia assisti-lo novamente, visto que ficou impressionado com a película. Isso lhe rendeu até um soneto, o qual fizera publicar no jornal informativo do curso de Literatura, por intermédio de um primo, estudante que tem acesso ao hebdomadário.
Além do soneto, ficara imaginando se conseguiria viver um doce novembro com alguém. Lembrou-se de suas amigas mais próximas e até alguma mais distante. Não conseguiu encaixar ninguém no perfil. ¿Sua namorada? Não, essa não. Chegou à conclusão que deveria ser alguém que conhecesse nos próximos meses, antes de novembro.
Logicamente que não poderia fazer como a Sara do filme, faltava tanto a casa quanto o dinheiro para manter uma durante o período de um mês. Arquitetou então que seria um romance sem travas, pelo expresso período de 30 dias corridos de novembro próximo, no qual não moraria junto com a consorte, contudo sempre que esta a chamasse, ele deveria desvencilhar-se do que estivesse fazendo, de sorte que seria preferencialmente da outra pessoa durante o período de um mês. Logicamente, exigiria que a namorada de novembro também se submetesse a esses ditames.
Tudo isso Higor lembrou, como que por flashes, enquanto Hilana ocupa o banheiro para se lavar e escovar os dentes. Ele mais uma vez amaldiçoava sua pouca memória e o fato de estar, novamente, sem a posse de sua escova dental.
Quando da volta do lavabo, Hilana parecia ser outra pessoa. As vacilações e as titubeações da hora da refeição pareciam sanadas. Pensara, trancada no recinto, que tudo isso pudesse ser uma grande peça que Higor queria lhe pregar. Afinal, até então o vira apenas três vezes na vida. Isso durante as últimas três manhãs de terça-feira, porque ambos estavam matriculados com o mesmo professor na disciplina de Anatomia. Ainda assim, só dirigira-lhe a palavra porque, no sorteio empreendido pela professora de Anatomia (que substituíra o outro professor sem aparente motivo prévio), ficaram na mesma dupla para o seminário sobre sistema digestivo, marcado para janeiro. Como iria viajar em janeiro, foi informar-lhe que talvez tivesse de apresentar o seminário sozinho. Isso foi na segunda terça-feira de aula. Na outra aula, de ontem, apenas tem lembrança de ter-lhe cumprimentado, ainda que à distância.
Ele, nestes voláteis encontros, muito gentil e muito sério, não aparentou nenhuma outra intenção para com ela. Ou então não percebera direito. Recorda que Higor aceitou de prontidão, sem furtar-se a ser educado. Perguntara para onde ia viajar e se tinha alguma descendência europeia, ao ouvir sobre o destino. Mas não, por mais que tentasse, não lograva êxito em ver segundas intenções no comportamento de seu colega de sala.
Por imaginar que tudo poderia ser uma brincadeira de Higor, apesar de não lhe ter parecido um sujeito brincalhão, ficara mais calma e parecia dominar-se melhor agora. Sentia-se mais preparada para combater as investidas da proposta – mais louca impossível – de seu consorte.
Na volta para o bloco didático do curso de Enfermagem de uma Universidade qualquer, os dois voltaram juntos. E Higor insistindo:
Mas não é necessário haver um envolvimento afetivo. Não no sentido duradouro. O que proponho é que vivamos apenas a parte legal de um relacionamento. ¿Ou você duvida que algo no mundo é melhor que namoro novo, como diria o velho Gonzaga? E riu.
Na verdade, ambos riram. Só que Hilana foi mais discreta. Mas acabou concordando: se não fosse o melhor evento do mundo, pelo menos conhecia poucas coisas, se é que de fato conhecia, mais gostosas. Lembrou-se, em seguida, de um dia que fizera amor com seu namorado em uma praia, na hora do crepúsculo. O lugar ia ficando escuro à mesma proporção que deserto. Seu namorado propusera e ela, sempre racional e contrária a eventos implanejados, sem saber ao certo porque, cedera. Aquela foi uma das poucas vezes que não teve de fingir um orgasmo para seu namorado. Naquela ocasião, de fato, gozara e gozara muito. A simples ideia de alguém poder passar e, inevitavelmente, vê-los trepando deixava-a relaxada, o que raramente acontecia na hora do amor. Assim de prontidão, sem delineamentos anteriores.
As melhores coisas do mundo são aquelas não planejadas! Eu odeio pessoas que, para ir à padaria da esquina querem fazer um planejamento ou imaginar que podem ser assaltadas ou sofrer algum tipo de retaliação. Tem gente que pra dar um passo na calçada faz uma medida do ângulo que pode formar com as pernas. Ora, se formos pensar no que temos de vida, fatalmente chegaremos à morte. É nossa única certeza. Prefiro ser pouco racional e experimentar viver, sem projetos ou programas pré-concebidos.
Parece que ele adivinhou o que eu estava pensando, foi o pensamento de Hilana. Porém, não se deu por vencida:
¿E você não planejou fazer uma faculdade? ¿Quer me convencer que tudo isso foi obra do acaso e de sua irracionalidade?
Internamente ela vibrou. Sentiu orgulho de si e da argumentação que expusera.
É, logicamente não posso me alhear ao mundo. Sou parte dele.
Vendo aqui uma possibilidade de escape, emendou:
Vou ter de ir, minha aula começa em pouco tempo.
Ele, sem pensar muito, mecânico:
Você ainda tem mais de uma hora para sua próxima aula.
¿Como ele sabe?, pensou Hilana.
Mas se você precisar mesmo ir, vá. E só queria que antes você me desse a resposta.
Posso te dar uma pergunta como resposta?
Até antes de você me dar, a resposta ainda é sua. Informe-me do modo que achar mais conveniente. E sorriu, amável.
Dentes brancos e eretos. Um rosto bonito, castigado por uma barba de anteontem e algumas lembranças da acne, mas de um conjunto harmonioso entre os olhos, a boca, o nariz e os demais traços. Nem alto nem baixo, mais pra gordo que pra forte.
Tá. Então, te pergunto: ¿por que eu?
Risos de parte a parte.
Com um olhar sério e penetrante, contou-lhe como teve a ideia do novembro doce. Ela ouviu com atenção. Parece que sentiu um pouco de medo agora, por sentir que ele falava a sério.
Sim, entendi. Muito interessante sua história. Mas não entendi por que você escolheu a mim...
Você devia sentir-se honrada, brincou.
Ela, muito simpática, continuou:
¿Devo agradecer ao meu horóscopo ter me dado a possibilidade de um novembro tão doce?
Riram os dois. Dava gosto vê-los sorrir. Formavam, de fato, um belo casal, poderia dizer qualquer narrador desprovido de criatividade assim como eu.
Quando a vi na aula, comentando coisas e bem participativa tive especial interesse em você. Vi você se pronunciando sobre como acharia melhor a avaliação da disciplina. Gostei de sua espontaneidade. Não poderia deixar de dizer que sua beleza não me chamou a atenção.
Então... mas moças bonitas e espontâneas existem aos montes.
O cabelo, teimosamente, postava-se no rosto de Hilana. Ela tirava-o e repunha-o ao lugar com certo automatismo. Ele via naquele gesto um quê de poesia. ¿Mas por que, o que há de mais em tirar-se os cabelos que entopem a visão? Talvez a melhor resposta seja essa: qualquer coisa é bela quando estamos de amores, ainda que passageiros. Anda-se de mãos atadas à tolice quando se está muito interessado em alguém.
¿Esse é seu melhor jeito de me dar um “não”?
Não quero ser grossa, ¿mas você acha que há alguma possibilidade d’eu dar um “sim”?
Bom, enquanto não tenho um “não” prefiro acreditar que tenho um “sim”.
Certo sorriso de admiração fez-se no rosto dela. Realmente não tinha dado muita atenção a ele durante as aulas. Calado, muito teso e de poucos amigos, Higor não era, de fato, alguém que chamasse atenção das pessoas por conta de suas habilidades sociais. Mas há uma impressionante desenvoltura dele neste momento, coisa que ela jamais desconfiaria sem essa conversa.
Além do mais, você vai jajá pra Europa. Sabendo que você viajará, fica mais fácil ter certeza de que seremos apenas um novembro e boas lembranças dele...
Bom, acho que você terá de esperar pelo próximo ano ou por sua próxima “candidata” para ter seu doce novembro...
¿Por quê?
Não basta minha negativa, tenho de justificar?
Escoram-se ao portão, pintado em azul, do pátio que antecede as salas de aula. Não há bancos vagos para sentarem-se, pois os assentos disponíveis estão ocupados por alunos deitados que, aproveitando-se do horário da sesta e das nuvens que nublam o céu, ressonam.
Imagine que não é uma prova objetiva, mas dissertativa.
Risos.
Havia no rosto dela algum interesse, senão pela proposta mas por conhecer melhor aquele que a propôs.
Ele parecia adivinhar minhas respostas, já sabe o que perguntar. Cara bacana e inteligente. Imagina eu pensar que ele fosse um quadrado. Isso, Hilana disse apenas para si. Aqui, o que vocalizou:
Tudo bem: por uma série de motivos. Talvez me faltariam dedos nas mãos se fosse enumerá-los.
Higor não gostou da resposta, mas adorou a maneira como foi formulada.
Se você não me disser nenhum em específico, motivo algum eu terei.
E ela, contando nos dedos:
Um, eu tenho namorado; dois, gosto muito dele; três, não o trairia por algo factível, quanto mais por uma efemeridade ou capricho que nem meu é; quatro, você tem namorada; seis – perdendo-se nas contas – e por último, isso é totalmente fora das balizas da razão!
¿Tenho direito a réplica?
Bom, minha aula já está quase na hora de iniciar.
Serei breve e marcante, tal qual nosso novembro.
Risos dele, certa impaciência dela. Prosseguiu:
Eu acho que o fato de ambos termos namorados não significa necessariamente um entrave.
¿Ah, não? Duvidou.
Não. Além do mais, antes de qualquer coisa, temos de nos desvencilhar desse suposto racionalismo que cada um carregaria dentre em si. ¿Por que precisamos tanto pautar nossas relações e decisões por algo que foi inventado por alguns filósofos durante o período iluminista? ¿Você não acha que deixamos de viver e criar uma série de inventividades por que somos prisioneiro da razão? ¿Não há, porventura, hipocrisia em nos furtarmos a fazer algo que queremos e temos vontade simplesmente porque não nos sentiríamos bem com nosso algoz maior, a razão? ¿Ademais, para finalizar, não haveria, por ventura, racionalidade em propor nosso doce novembro?
Ela, de alguma forma tocada com o discurso, retrucou:
Mas foi você mesmo quem disse que não estamos fora do mundo, que não podemos negá-lo de todo.
Quanto mais a conheço mais percebo que há, efetivamente, vida em você.
Ela, pega sem sobreaviso pelo elogio, resmunga algo incompreensível e fixa o olhar no longe.
Ele aproveita a ocasião e blefa:
Eu sei que você tá a fim. Por melhor que seja seu namoro, sempre há espaço para algo diferente. Você tá neste momento imaginando como seria inédito e inesquecível um doce novembro que não atravessaria as fronteiras próprias a novembro.
¿E o que mais o doutor leu da minha mente?, ironizou com simpatia.
Imagina só! Quando você tiver 70 anos vai poder contar pra sua neta uma aventura dessas. Eu, contando também esta idade, deleitar-me-ei junto aos meus descendentes com histórias desse doce novembro...
Mas isso tudo é um absurdo! Eu não deitaria junto com alguém que eu nem conheço.
¿Já disse que tempo você terá para tal?
Ela riu gostoso.
Se você for tão bom namorado quanto é bom de papo, imagino que sua namorada deve ser louquinha por você.
É, talvez seja. Mas acho que não me tem apreço como tenho a ela.
¿Ah, é? ¿Há quanto tempo você namora?
Quase dois anos.
Eu tenho quase três com o Fidel.
¿Tempo o suficiente para saber que é com ele que você quer casar?
Acho que sim.
¿E um mês seria tempo suficiente para você nunca me esquecer?
¿Um mês de trinta dias? Por que você não escolheu um mês de trinta e um?
Não fui eu quem escolheu, foi o diretor do filme.
Risos. Um clima amistoso se estabelecia entre ambos. Ele, pernas cruzadas em xis, sorria frequentemente. Agora tem às mãos os óculos, que limpa displicentemente na blusa. Ela, segurando alguns fios de cabelo com os dedos, parece à vontade.
Minha aula vai começar, tenho de ir.
¿Mas e eu vou ficar irrespondido?
A resposta eu já dei. O que não dei foi a resposta que você queria...
Dessa vez, riu com propriedade. Ele, como que encurralado, não teve outra opção senão rir também. Neste instante teve certeza e reforçou para si que ela realmente seria uma ótima companheira para um doce novembro como o imaginado – impensável por burocratas.


01.dez.2012

O avesso da dor


Se é pra sentir dor,
sintamo-la ao avesso.
Se é pra sorrir,
que seja sem fim,
apenas com começo.

Lábios debruçados
beiços entupidos
suor, lágrimas, amor...
Sangue embotado
braços compridos
mãos rasteiras, ardor...

As derradeiras dores,
o fim sem começo
morte, ocaso, crepúsculo
ciclo!

As verdadeiras dores,
o engenhoso sofrer
viver de sofreres
sofreres pra viver.

O último dos sorrisos
nem sempre é o mais belo.
Nossos maiores caprichos,
nem sempre os mais sinceros.

Embotar a própria dor
deveria ser o fim último das ciências...

Sorrir? Como se a vida é um eterno desavesso?

24.dez.2011

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Patrãozinho

Eles cresceram juntos. A distância temporal que os separavam era de apenas alguns meses. Viveram toda a infância e adolescência no mesmo ambiente bucólico de uma fazenda interiorana. Eram amicíssimos, gostavam das mesmas coisas e ainda moravam no mesmo espaço geográfico; a grande disparidade entre ambos era o berço: um era filho do dono, o outro filho de um empregado da fazenda. Um nascera em “berço de ouro”, o outro usara o berço emprestado de um irmão mais velho.

Aparências físicas eram poucas ou quase nenhuma. Apesar de terem apreço por coisas semelhantes, a vontade de um sempre se sobrepunha à vontade do outro. Logicamente, que esta vontade é consoante com as leis contraditórias (e quase consuetudinárias) que regem o capitalismo, fazendo com que o patrãozinho tenha suas pretensões e gostos saciados com maior densidade que o filho do empregado, que muitas vezes era privado de necessidades básicas ou submetido a situações nada agradáveis.

Bernardo, o filho do empregado da fazenda era um sujeito pobre ao extremo. Submisso, oprimido e humilhado. Nunca pôde chamar o patrãozinho pelo nome na frente de seu pai, era sempre patrãozinho. Muitas vezes assumia culpas pelas traquinagens do patrãozinho, assumindo, assim, por mais paradoxal que seja, um papel paternalista em relação ao filho do patrão de seu pai. Este último, prepotente que era, desde cedo percebera as vantagens que o berço lhe dera.

Certa feita, quando tinham ambos sete anos, o tal patrãozinho quebrara um vaso de cerâmica que era muito caro a sua mãe, Lucinda. Dizia ela ter recebido aquilo como herança de família (adorava repetir que tinha sangue nobre, pois que sua família era romena e descendente direta da alta nobreza daquele lugar), hábito que se repetira por sete gerações seguidas e que o tal vaso tinha origem persa, adquirida por um antepassado seu a um caixeiro-viajante, em tempos remotos e imemoráveis, em terras húngaras.

Como ia contando, antes que perca o fio da meada e acabe dizendo-vos uma outra história, o tal vaso foi quebrado pelo patrãozinho, que sabia de todo o amor que sua mãe dedicava àquela peça e do mar buliçoso em que se encontrava: náufrago em plena terra firme. Com mal disfarçada ansiedade, correra à casa de seu alugado e lhe fizera ir ao local onde jazia o vaso persa. Esse último, em primeiros olhares, compreendera tudo e assentira com um silêncio irrevogável. Acabou por assumir a conta da traquinagem alheia, pagando com o próprio lombo, a culpa da falta de coordenação motora nas mãos do patrãozinho.

As feridas que seu pai lhe fez ao espinhaço doeram-lhe alguns dias, mas nada que banhos de rio e brincadeiras com o filho do patrão não o fizessem esquecê-las. Assim cresceram, adentraram à puberdade, engrossaram o pescoço e a voz. Como era de se esperar, patrãozinho ainda beneficiava-se do empregado, amigo seu. Contudo, malgrado meu, este subira de cargo: agora era alcoviteiro dos amores voláteis do patrão.

Apesar de assumir este cargo – deveras honroso para ele – também conseguia, não raro, meninas para desposar em instantes fúlgidos e fugidios. Como dizia sua mãe, tinha no sangue o mesmo que o pai: “um gosto por muié que eu nunca vi!”. Com efeito, se não tinha em sobras, tinha sempre alguém com quem pudesse deitar depois do almoço, em substituição à sesta. Além dos momentos de cópula com vadias e meretrizes da região onde morava, o filho do empregado tinha uma namoradinha, Sueli.

Como esta seria a mulher que receberia perante Deus – tinha muita vontade de casar com Igreja enfeitada, terno, gravata, padre e churrasco para convidados! – não bulia com ela, contentando-se em fornicar com outras mulheres, resguardando para o leito de núpcias a virgindade de sua bela namorada.

Contudo, o Destino tem razões que a própria razão desconhece. O destino é um homem que nunca cresceu de todo: parece andar sozinho pelo mundo, seguindo uma lógica própria, pregando peças em todos nós, sem importar-se muito com as consequências do que ele mesmo produz; ao que parece, sua única preocupação é não deixar nossa existência cair em uma rotina costumeira, dando força motriz à própria vida, para que este dialogue com algo que não esteja preparada ou não esperava ter de enfrentar.

Eis que, no auge do amor do empregadinho por sua, dentre em breve, esposa, surge aquilo que só mesmo o Destino – esta entidade ao mesmo tempo demoníaca e angelical – pode preparar. Ia até o último de suas forças, sugava-se os últimos restos de seus pulmões para não transcender a barreira criada por ele próprio – pois era nítido que Sueli, o corpo entupido de hormônios próprios à idade, estava muito a fim que Bernardo quebrasse o cabresto que impusera a si mesmo. Bernardo estava em vias de invalidar sua própria promessa, mas lembrava-se que sua finada avó: “Meu filho, casar com mulher já mexida não dá sorte para os filhos”.

Boquinha da noite de um dia muito calorento, patrãozinho chega à casa de seu empregadinho com uma expressão facial que não passaria despercebida nem ao maior dos desavisados: metera-se onde não devia e não sabia sair sozinho do buraco que cavara para si.

O fato é que há algum tempo patrãozinho vinha mexendo no tesouro que Bernardo guardara para desfrutar somente após a concessão divina. Grande foi o torpor que tomou conta de seu corpo quando o patrãozinho lhe informara, sentindo-se narcotizado e esperando, em vão, que este lhe abrisse um sorriso e confessasse que estava mentindo. Ledo engano: o fato estava consumado!

E como eventos negativos – das duas, uma (ou mesmo as duas!) – tem irmãos gêmeos ou conseguem reproduzirem-se incrivelmente, patrãozinho agravou a eminente situação aversiva de Bernardo:

- Ela tá buchuda! E tu sabe que eu não posso casar com ela nem nós podemos abandoná-la à própria sorte...

Bernardo entendera, ato contínuo.

Seus sonhos passam a ser dessonhados: não havia muito tempo! Havia de casar mês que entra, mais tardar. Pior seria se todos soubessem.

Nada de pompas, nem convivas, nem gravata... talvez nem anel tivesse. O que teria, isso sim, e pelo resto da vida, era de cuidar de um filho que não teria nada de seu, a não ser a má sorte de nascer em uma família pobre.

Em instantes, previra anos: casar-se-ia com uma mulher que, a despeito de seu bem-querer, traíra-lhe com seu melhor amigo (revogadas as disposições em contrário); criaria um filho d’outro que, fatalmente, seria escolhido para apadrinhar o rebento; perderia sua festa de casório tão sonhada; ocultaria de sua mãe que seu primeiro neto não era seu parente de sangue e, golpe final, esconderia isso de todos até o fim de seus dias. Se necessário fosse, faria uma algibeira em sua mortalha para levar este segredo para além-túmulo.

Enfim, a festa de casório, tímida como era de se esperar, dada a pouca posse dos noivos e, apesar da ajuda dos “imensuráveis esforços” (palavras do padre, que celebrara a união perante Deus) do patrãozinho em dar-lhe fartura, ocorrera.

“Como é que a Sueli teve esta coragem, se dizia perante a estátua de Santo Antônio lá de casa que me amaria até o fim? E o patrãozinho? Agora entendo porque ele tinha tanto interesse em meu namoro e não cessava de repetir que namoro era besteira, que eu devia era ficar solteiro, que mulher nenhuma prestava.. e eu sempre dizia que ela era diferente... o pior de tudo é ter que aguentar calado. Quando a gente apanha pode ao menos gritar. Mas se eu for reclamar como vou ter coragem de olhar pros outros? Como vou ter gana de trabalhar na lida se por onde passar vou ouvir – mesmo que não digam – me chamarem de corno? No fim, quem tem razão mesmo é papai: a corda só arrebenta na mão do pobre.”

O vestido da noiva, frouxo como era de se esperar de uma noiva que quebrara as leis celibatárias antes do himeneu, disfarçava bem o ventre crescido.


19.dez.2011

Vai-se longe o tempo


Vai-se longe o tempo
em que eu era companheiro da madrugada
e ela minha amante predileta.

Dista-se o tempo
em que eu - noites enluaradas –
perdia-me nos rabiscos
(que eu mesmo tecia às paredes frias e caladas)
de velhas canções de amor.

Vai-se longe o tempo
em que o amor era companheiro inegociável
e a esperança sua irmã gêmea.

Hoje sou apenas rabiscos do que fui
poeta de outrora em debandada
rio que se recusa deitar-se ao mar
carinho latente que não flui
incerta lágrima desditada
esbelta lástima ao luar...

Contudo, como se não me bastasse,
nunca vi uma (verdadeira) poesia
que não me abalasse ou me deixasse
os olhos úmidos... de alegria!

07.fev.2012

O ultimo pôr-do-sol



E porque era o último dia
ele acordou com um sorriso;
E porque não mais conseguia
disfarçar o que sentia
pululou má fé de juízo.

E porque era sábado
lembrou de descansar.
Descansou de um estado,
letargo, sem embargo,
atrasado, desacompanhado
... um estado de amar!

E porque era abril lembrou-se à vida:
o que era seu estava em um bueiro escondido.
Pensou: “até agora minha existência fora perdida!”.
Recordou a lonjura do mar e da triste partida.

E porque era mar deixou-se amar
E porque era terra achou-se de enterrar
E porque era guerra deliberou-se guerrear
E porque amava a vida libertou-se do amar
E porque era desamado inventou-se de suicidar.

14.fev.2012

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Sou quem me digo ser?


A arbitrária força do constituir-se
o poder de escolha: ledo engano.
Simulacro produzido, ano a ano
ah, se enquanto sujeito eu existisse.

O que me perpassa me produz
Sou atravessado por uma série de discursos
De-sejos, des-gostos, dis-farces: tudo me conduz
Minúcia do que sou: meu grande insulto.

Quem me digo ser, não sou quem sou
amálgama de constructos que me produzem
ente sujo, se subjetividade produzida

Devaneio, ilusão, sonho... amor
os agenciamentos maquínicos me conduzem
peguei emprestado minha própria vida!

29.nov.2011

O Mim sem o Ti


Ao cabo,
acabo,
ao fim,
comigo –
sem migo
sem ti...

19.maio.2011