Chegou a ela, meio
vacilante, mas decidido:
¿Oi, tudo bem?
E ela, querendo
mostrar-se simpática:
Oi, ¿o que achou da
nova professora?
Ele, querendo logo mudar
o assunto:
Sei lá, mas parece
bem segura sobre o que quer dizer...
É, achei algo
parecido...
Tomando fôlego e
coragem uma vez mais, jogou:
Tenho uma proposta
pra você.
Ela, pega em
surpresa, titubeou:
¿Proposta?
E riu desajeitada.
Ele, percebendo sua
hesitação, disse de prontidão:
Hoje começou
novembro. Minha proposta é vivermos, eu e você, um doce novembro, como no
filme.
Sem entender o que
seria aquela proposta, Hilana virou o olhar e tentou sorrir, mas nem isso
conseguiu, dado seu embaraço.
As colunas do
restaurante universitário pareciam ser testemunhas óticas desse absurdo proposto
nos últimos segundos. Hilana olhava para as ditas colunas e ficava lembrando-se
de cenas do filme. A que o garotinho Abner pede a Nelson para que seja seu pai
na escola marcou-a profundamente.
Como que para não
ser ouvida pelas colunas de sustentação do edifício, fez um “han?” inaudível.
Ele, senhor de si e
imaginando que ela deveria estar pensando mil coisas por segundo, fez seu
melhor sorriso e emendou:
Uma proposta assim
não reclama que pensemos sobre ela, mas que a aceitemos ou não. Se pensarmos,
claro que vamos lhe dar uma negativa. Eu bem sei que é uma sugestão
completamente irracional. Se você pensar um pouco, também chegará a esta
conclusão facilmente. Portanto, lhe peço: simplesmente me diga sim ou não, sem
sofismar muito. E riu mais uma vez.
Ela também, mais
sem graça do que por achar a situação engraçada.
Achou por bem falar
que a comida estava gostosa, tão logo sentaram, lado a lado e frente a frente
com um sem número de estudantes desconhecidos para ambos.
Higor não
respondeu. Hilana, achando-se acuada, percebendo que devia uma resposta, bradou
em tom lépido:
Talvez você não
saiba, mas eu tenho um namorado. E essa proposta é meio maluca...
Ela, filha de pai
italiano e mãe holandesa – o que lhe garantia um belo par de olhos claros e um
cabelo dourado, de bela face, dessas de chamar a atenção – tinha viagem marcada
para a Europa no início do próximo ano. Ficaria uma boa temporada por lá.
Enquanto isso, trancaria a faculdade e viveria às custas de sua mãe.
Ele, sabedor do
enlace – afinal para isso estão aí em toda parte as redes sociais – bem como da
viagem marcada para breve, não se fez de rogado:
É, eu sei. Mas isso
não é problema. Eu também tenho namorada.
Ela, achando ver
aqui uma brecha, encadeou:
¿Então, como você
me propõe algo parecido se nem é livre para cumprir sua parte na empreitada? E
sorriu, dona de si.
Acontece que Higor
era implacável:
Mas não é disso que
se trata. ¿Você não assistiu ao filme?
Ela fez que sim com
o crânio.
¿Então não lembra
que um doce novembro dura apenas um mês? ¿E que um parceiro não deveria se
apaixonar pelo outro, sabedor da efemeridade do romance?
Mas eles acabaram
apaixonando-se, ¿não foi? Nem sempre o plano sai como o projeto...
Mas nós poderemos
fazer dar certo. Depende mais de nossa vontade do que de um projeto anterior. ¿Você
não acredita?
Não estou bem certa
quanto ao fato de acreditar ou não. Talvez seja mais falta de vontade que
propriamente falta de crença.
Aqui, um leve
engolir em seco por parte dele.
¿Acaso recorda que,
inicialmente, ele achou uma ideia absurda da parte dela, mas que, consentindo,
permitiu viver-se um dos mais belos romances da história do cinema? A única
diferença aqui é que, em vez de ser por parte da mulher a proposta, é esta quem
fica atabalhoada.
Ambos terminaram
seus pratos. O barulho era o mesmo de sempre onde há pessoas famintas e
saciando-se: um misto de satisfação e impaciência, bem como de bater de
talheres e de esôfagos e glotes deglutindo. Ambos estavam fora de casa desde
manhã cedo e, provavelmente, não voltariam antes de entardecer para casa,
atarefados que são os estudantes profissionais. Um leve cheiro de suor impregna
o ambiente.
Hilana e Higor
também suam, umedecendo suas roupas mais íntimas. Ela, talvez pela apreensão de
estar exposta a uma circunstância da qual não consegue imaginar como fugir
pelos próximos 40 ou 50 minutos, sua mais que o devido. Não foi à toa que ele
escolheu este horário e justo na quarta-feira, pois sabia que às quartas ela
almoçava sozinha e sua aula só retomava depois das 15:00 horas. Tempo haveria.
Higor, remexendo
suas pilhas de tralhas há alguns meses atrás encontrara a gravação de um filme
que ganhara de uma ex-namorada em tempos que não conseguia relembrar-se ao
certo. O filme era justamente Doce
Novembro. Não foi má ideia assisti-lo novamente, visto que ficou
impressionado com a película. Isso lhe rendeu até um soneto, o qual fizera
publicar no jornal informativo do curso de Literatura, por intermédio de um
primo, estudante que tem acesso ao hebdomadário.
Além do soneto,
ficara imaginando se conseguiria viver um doce novembro com alguém. Lembrou-se
de suas amigas mais próximas e até alguma mais distante. Não conseguiu encaixar
ninguém no perfil. ¿Sua namorada? Não, essa não. Chegou à conclusão que deveria
ser alguém que conhecesse nos próximos meses, antes de novembro.
Logicamente que não
poderia fazer como a Sara do filme, faltava tanto a casa quanto o dinheiro para
manter uma durante o período de um mês. Arquitetou então que seria um romance
sem travas, pelo expresso período de 30 dias corridos de novembro próximo, no
qual não moraria junto com a consorte, contudo sempre que esta a chamasse, ele
deveria desvencilhar-se do que estivesse fazendo, de sorte que seria preferencialmente da outra pessoa
durante o período de um mês. Logicamente, exigiria que a namorada de novembro
também se submetesse a esses ditames.
Tudo isso Higor
lembrou, como que por flashes,
enquanto Hilana ocupa o banheiro para se lavar e escovar os dentes. Ele mais
uma vez amaldiçoava sua pouca memória e o fato de estar, novamente, sem a posse
de sua escova dental.
Quando da volta do
lavabo, Hilana parecia ser outra pessoa. As vacilações e as titubeações da hora
da refeição pareciam sanadas. Pensara, trancada no recinto, que tudo isso
pudesse ser uma grande peça que Higor queria lhe pregar. Afinal, até então o
vira apenas três vezes na vida. Isso durante as últimas três manhãs de
terça-feira, porque ambos estavam matriculados com o mesmo professor na
disciplina de Anatomia. Ainda assim, só dirigira-lhe a palavra porque, no
sorteio empreendido pela professora de Anatomia (que substituíra o outro
professor sem aparente motivo prévio), ficaram na mesma dupla para o seminário
sobre sistema digestivo, marcado para janeiro. Como iria viajar em janeiro, foi
informar-lhe que talvez tivesse de apresentar o seminário sozinho. Isso foi na
segunda terça-feira de aula. Na outra aula, de ontem, apenas tem lembrança de
ter-lhe cumprimentado, ainda que à distância.
Ele, nestes
voláteis encontros, muito gentil e muito sério, não aparentou nenhuma outra
intenção para com ela. Ou então não percebera direito. Recorda que Higor
aceitou de prontidão, sem furtar-se a ser educado. Perguntara para onde ia
viajar e se tinha alguma descendência europeia, ao ouvir sobre o destino. Mas
não, por mais que tentasse, não lograva êxito em ver segundas intenções no
comportamento de seu colega de sala.
Por imaginar que
tudo poderia ser uma brincadeira de Higor, apesar de não lhe ter parecido um
sujeito brincalhão, ficara mais calma e parecia dominar-se melhor agora.
Sentia-se mais preparada para combater as investidas da proposta – mais louca
impossível – de seu consorte.
Na volta para o bloco
didático do curso de Enfermagem de uma Universidade qualquer, os dois voltaram
juntos. E Higor insistindo:
Mas não é
necessário haver um envolvimento afetivo. Não no sentido duradouro. O que
proponho é que vivamos apenas a parte legal de um relacionamento. ¿Ou você
duvida que algo no mundo é melhor que namoro novo, como diria o velho Gonzaga?
E riu.
Na verdade, ambos
riram. Só que Hilana foi mais discreta. Mas acabou concordando: se não fosse o
melhor evento do mundo, pelo menos conhecia poucas coisas, se é que de fato
conhecia, mais gostosas. Lembrou-se, em seguida, de um dia que fizera amor com
seu namorado em uma praia, na hora do crepúsculo. O lugar ia ficando escuro à
mesma proporção que deserto. Seu namorado propusera e ela, sempre racional e contrária
a eventos implanejados, sem saber ao certo porque, cedera. Aquela foi uma das
poucas vezes que não teve de fingir um orgasmo para seu namorado. Naquela
ocasião, de fato, gozara e gozara muito. A simples ideia de alguém poder passar
e, inevitavelmente, vê-los trepando deixava-a relaxada, o que raramente
acontecia na hora do amor. Assim de prontidão, sem delineamentos anteriores.
As melhores coisas
do mundo são aquelas não planejadas! Eu odeio pessoas que, para ir à padaria da
esquina querem fazer um planejamento ou imaginar que podem ser assaltadas ou
sofrer algum tipo de retaliação. Tem gente que pra dar um passo na calçada faz
uma medida do ângulo que pode formar com as pernas. Ora, se formos pensar no
que temos de vida, fatalmente chegaremos à morte. É nossa única certeza.
Prefiro ser pouco racional e experimentar viver, sem projetos ou programas
pré-concebidos.
Parece que ele
adivinhou o que eu estava pensando, foi o pensamento de Hilana. Porém, não se
deu por vencida:
¿E você não
planejou fazer uma faculdade? ¿Quer me convencer que tudo isso foi obra do
acaso e de sua irracionalidade?
Internamente ela
vibrou. Sentiu orgulho de si e da argumentação que expusera.
É, logicamente não
posso me alhear ao mundo. Sou parte dele.
Vendo aqui uma
possibilidade de escape, emendou:
Vou ter de ir,
minha aula começa em pouco tempo.
Ele, sem pensar
muito, mecânico:
Você ainda tem mais
de uma hora para sua próxima aula.
¿Como ele sabe?,
pensou Hilana.
Mas se você
precisar mesmo ir, vá. E só queria que antes você me desse a resposta.
Posso te dar uma
pergunta como resposta?
Até antes de você
me dar, a resposta ainda é sua. Informe-me do modo que achar mais conveniente.
E sorriu, amável.
Dentes brancos e
eretos. Um rosto bonito, castigado por uma barba de anteontem e algumas lembranças
da acne, mas de um conjunto harmonioso entre os olhos, a boca, o nariz e os
demais traços. Nem alto nem baixo, mais pra gordo que pra forte.
Tá. Então, te
pergunto: ¿por que eu?
Risos de parte a
parte.
Com um olhar sério
e penetrante, contou-lhe como teve a ideia do novembro doce. Ela ouviu com
atenção. Parece que sentiu um pouco de medo agora, por sentir que ele falava a
sério.
Sim, entendi. Muito
interessante sua história. Mas não entendi por que você escolheu a mim...
Você devia
sentir-se honrada, brincou.
Ela, muito
simpática, continuou:
¿Devo agradecer ao
meu horóscopo ter me dado a possibilidade de um novembro tão doce?
Riram os dois. Dava
gosto vê-los sorrir. Formavam, de fato, um belo casal, poderia dizer qualquer
narrador desprovido de criatividade assim como eu.
Quando a vi na
aula, comentando coisas e bem participativa tive especial interesse em você. Vi
você se pronunciando sobre como acharia melhor a avaliação da disciplina.
Gostei de sua espontaneidade. Não poderia deixar de dizer que sua beleza não me
chamou a atenção.
Então... mas moças
bonitas e espontâneas existem aos montes.
O cabelo,
teimosamente, postava-se no rosto de Hilana. Ela tirava-o e repunha-o ao lugar
com certo automatismo. Ele via naquele gesto um quê de poesia. ¿Mas por que, o que
há de mais em tirar-se os cabelos que entopem a visão? Talvez a melhor resposta
seja essa: qualquer coisa é bela quando estamos de amores, ainda que
passageiros. Anda-se de mãos atadas à tolice quando se está muito interessado
em alguém.
¿Esse é seu melhor
jeito de me dar um “não”?
Não quero ser
grossa, ¿mas você acha que há alguma possibilidade d’eu dar um “sim”?
Bom, enquanto não
tenho um “não” prefiro acreditar que tenho um “sim”.
Certo sorriso de admiração
fez-se no rosto dela. Realmente não tinha dado muita atenção a ele durante as
aulas. Calado, muito teso e de poucos amigos, Higor não era, de fato, alguém
que chamasse atenção das pessoas por conta de suas habilidades sociais. Mas há
uma impressionante desenvoltura dele neste momento, coisa que ela jamais
desconfiaria sem essa conversa.
Além do mais, você
vai jajá pra Europa. Sabendo que você viajará, fica mais fácil ter certeza de
que seremos apenas um novembro e boas lembranças dele...
Bom, acho que você
terá de esperar pelo próximo ano ou por sua próxima “candidata” para ter seu
doce novembro...
¿Por quê?
Não basta minha
negativa, tenho de justificar?
Escoram-se ao
portão, pintado em azul, do pátio que antecede as salas de aula. Não há bancos
vagos para sentarem-se, pois os assentos disponíveis estão ocupados por alunos
deitados que, aproveitando-se do horário da sesta e das nuvens que nublam o
céu, ressonam.
Imagine que não é
uma prova objetiva, mas dissertativa.
Risos.
Havia no rosto dela
algum interesse, senão pela proposta mas por conhecer melhor aquele que a
propôs.
Ele parecia
adivinhar minhas respostas, já sabe o que perguntar. Cara bacana e inteligente.
Imagina eu pensar que ele fosse um quadrado. Isso, Hilana disse apenas para si.
Aqui, o que vocalizou:
Tudo bem: por uma
série de motivos. Talvez me faltariam dedos nas mãos se fosse enumerá-los.
Higor não gostou da
resposta, mas adorou a maneira como foi formulada.
Se você não me
disser nenhum em específico, motivo algum eu terei.
E ela, contando nos
dedos:
Um, eu tenho
namorado; dois, gosto muito dele; três, não o trairia por algo factível, quanto
mais por uma efemeridade ou capricho que nem meu é; quatro, você tem namorada;
seis – perdendo-se nas contas – e por último, isso é totalmente fora das
balizas da razão!
¿Tenho direito a
réplica?
Bom, minha aula já
está quase na hora de iniciar.
Serei breve e
marcante, tal qual nosso novembro.
Risos dele, certa
impaciência dela. Prosseguiu:
Eu acho que o fato
de ambos termos namorados não significa necessariamente um entrave.
¿Ah, não? Duvidou.
Não. Além do mais,
antes de qualquer coisa, temos de nos desvencilhar desse suposto racionalismo
que cada um carregaria dentre em si. ¿Por que precisamos tanto pautar nossas
relações e decisões por algo que foi inventado por alguns filósofos durante o
período iluminista? ¿Você não acha que deixamos de viver e criar uma série de
inventividades por que somos prisioneiro da razão? ¿Não há, porventura,
hipocrisia em nos furtarmos a fazer algo que queremos e temos vontade
simplesmente porque não nos sentiríamos bem com nosso algoz maior, a razão?
¿Ademais, para finalizar, não haveria, por ventura, racionalidade em propor
nosso doce novembro?
Ela, de alguma
forma tocada com o discurso, retrucou:
Mas foi você mesmo
quem disse que não estamos fora do mundo, que não podemos negá-lo de todo.
Quanto mais a
conheço mais percebo que há, efetivamente, vida em você.
Ela, pega sem
sobreaviso pelo elogio, resmunga algo incompreensível e fixa o olhar no longe.
Ele aproveita a
ocasião e blefa:
Eu sei que você tá
a fim. Por melhor que seja seu namoro, sempre há espaço para algo diferente.
Você tá neste momento imaginando como seria inédito e inesquecível um doce
novembro que não atravessaria as fronteiras próprias a novembro.
¿E o que mais o
doutor leu da minha mente?, ironizou com simpatia.
Imagina só! Quando
você tiver 70 anos vai poder contar pra sua neta uma aventura dessas. Eu,
contando também esta idade, deleitar-me-ei junto aos meus descendentes com histórias
desse doce novembro...
Mas isso tudo é um
absurdo! Eu não deitaria junto com alguém que eu nem conheço.
¿Já disse que tempo
você terá para tal?
Ela riu gostoso.
Se você for tão bom
namorado quanto é bom de papo, imagino que sua namorada deve ser louquinha por
você.
É, talvez seja. Mas
acho que não me tem apreço como tenho a ela.
¿Ah, é? ¿Há quanto
tempo você namora?
Quase dois anos.
Eu tenho quase três
com o Fidel.
¿Tempo o suficiente
para saber que é com ele que você quer casar?
Acho que sim.
¿E um mês seria
tempo suficiente para você nunca me esquecer?
¿Um mês de trinta
dias? Por que você não escolheu um mês de trinta e um?
Não fui eu quem
escolheu, foi o diretor do filme.
Risos. Um clima
amistoso se estabelecia entre ambos. Ele, pernas cruzadas em xis, sorria
frequentemente. Agora tem às mãos os óculos, que limpa displicentemente na
blusa. Ela, segurando alguns fios de cabelo com os dedos, parece à vontade.
Minha aula vai
começar, tenho de ir.
¿Mas e eu vou ficar
irrespondido?
A resposta eu já dei. O que não dei foi a
resposta que você queria...
Dessa vez, riu com
propriedade. Ele, como que encurralado, não teve outra opção senão rir também.
Neste instante teve certeza e reforçou para si que ela realmente seria uma
ótima companheira para um doce novembro como o imaginado – impensável por
burocratas.
01.dez.2012